sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O espírito da colmeia, de Victor Erice








Num ambiente que emenda a Guerra Civil Espanhola com a Segunda Guerra Mundial, duas garotas de aproximadamente sete e oito anos se veem diante da trama Frankenstein, transposta ao cinema pelo diretor James Whale, em 1931, em exibição no salão da cidade. Ana, a mais nova, pergunta à irmã Isabel por que o monstro mata a garotinha com quem conversava à beira do rio, e por que o matam depois. Isabel promete contar à irmã mais tarde, e somente com a insistência de Ana, já em casa, pronta para dormir, dirá que “no cinema tudo é mentira”, ninguém, portanto, morreu; e, além disso, ela mesma já viu o monstro vivo. A aparente ingênua contradição infantil de Isabel desconfia dos fatos narrados no cinema, mas não da imaginação – o monstro não morreu, é uma mentira, mas ele existe. Existe e, continua a mais velha, é um espírito, por isso não morre; seu corpo, no filme, era só um “disfarce”.
A contradição é aparente, pois Isabel sabia bem o que estava fazendo, ou pensava que sabia. Seu projeto era o de fazer Ana crer na existência do monstro como um espírito, brincando com suas próprias descobertas recentes acerca dos temas que surgirão a seguir. Isabel apresenta a casa do poço como o lugar onde vive o monstro – e que ela pode ver, mesmo sendo ele invisível, pois pode chamá-lo apenas fechando os olhos. Ana passa a frequentar a casa do poço, procurando pelo espírito. Lá, encontra uma grande pegada de sapato, e parece ser este o primeiro indício de sua busca.
A partir disso, tudo em volta contribui para a construção de um mundo povoado por mistérios, visto pelos olhos perscrutantes de Ana: o trem, os cogumelos, o homem ferido na casa do poço, a irmã que se faz de morta. O que esses elementos introduzem são o mal e a morte. O trem vem rápido e grandioso representando o perigo – é preciso afastar-se dos trilhos para que ele passe; Ana olha atônita como se o visse pela primeira vez. Com o pai, passeiam pelo bosque à procura de cogumelos bons; o pai ensina como identificar os venenosos e, ao encontrar um deles, afirma ser o “demônio”, esmagando-o com os pés. Finalmente, em uma das vezes em que vai à casa do poço, Ana vê o espírito: um homem ferido, que se descobrirá, a seguir, ter roubado de seu pai o relógio e o casaco. A irmã, Isabel, finge-se de morta para assustar Ana, vestindo-se de monstro.


Depois de todas essas experiências Ana parece organizar as relações entre a morte, o mal e os espíritos em uma imagem de Isabel, como um rabisco negro, pulando uma fogueira. O ápice de sua busca vem com a fuga após ver o pai na casa do poço e marcas de sangue onde antes estava o homem ferido: na noite, tal como no filme de Whale, a garotinha se encontra com o monstro; antes, colhera um cogumelo.
Quando a encontram, Ana está fraca, o médico recomenda repouso e afirma que, por ser criança, está sob o impacto de uma impressão forte, que logo passará. Porém, além de Ana, estão o pai e a mãe sob outros fortes impactos, ainda que adultos. O pai, um apicultor, está obcecado pela compreensão da vida na colmeia; escreve textos à noite para descrevê-la. A mãe, em uma carta para alguém de quem se separou durante a guerra, escreve duvidar de sua capacidade de “sentir de verdade a vida”, depois de tanta tristeza e destruição.
Isabel parece ser a mais próxima de discernir a presença do mal no mundo – aquele da citação inicial do texto – e com ele conviver, quando identifica o cogumelo bom, ou quando aperta o pescoço do gato até que ele a ataque, fazendo seu dedo sangrar. Olhando-se no espelho, Isabel lambuza os lábios de sangue e lambe.
Na apresentação do filme projetado em cena, um senhor pede aos espectadores que, por ser Frankenstein uma obra das mais estranhas já produzidas e muito assustadora, que procurem não levá-la muito a sério. Já o filme em curso, O espírito da colmeia, inicia-se com a legenda “era uma vez...”, um marcador de narrativa imaginária, e ainda de fábula infantil, em sua maioria. Duas vezes, portanto, somos avisados de que não devemos confundir ficção e realidade. Talvez, justamente, por não ser tão possível delimitar seus campos e medir seus efeitos – o mal pode apresentar-se em qualquer “disfarce”. Não deixa de ser interessante pensar que Ana Torrent, a atriz que interpreta Ana, irá protagonizar, 23 anos depois, Thesis morte ao vivo, filme de Alejandro Amenábar, cuja história apresenta os snuff movies, fitas com “encenação de mortes reais”.





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