sábado, 4 de junho de 2011

Uma temporada no inferno

                                                                                                      Arthur Rimbaud                                                       


Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim onde se abriam todos oscorações, onde corriam todos os vinhos.Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos.  E encontrei-a amarga.  E insultei-a.Levantei-me em armas contra a justiça.Fugi. Ó bruxas, ó miséria, ó ódio, é a vós que meu tesouro foi confiado!Consegui extirpar de meu espírito toda esperança humana. Pulei sobre toda alegria,para estrangulá-la, com o salto silencioso da fera.Chamei os carrascos para, ao morrer, morder a coronha de seus fuzis. Chamei osflagelos para afogar-me com a areia, o sangue. A desgraça foi meu deus. Chafurdeina lama. Sequei-me ao ar do crime. E preguei boas peças à loucura.E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota.Recentemente, quando me encontrava nas últimas, pensei procurar a chave doantigo festim, onde talvez eu recobraria o apetite.A caridade é a chave. Esta inspiração prova que eu sonhava!“Continuarás sendo hiena, etc...”, exclama o demônio que me coroou com tãoamáveis papoulas. “Recebe a morte com todos seus apetites, e teu egoísmo e todosos pecados capitais”.Ah! foi o que fiz, e em excesso:  Mas, caro Satã, eu te conjuro; um olhar menosirritado! e, na espera de algumas pequenas infâmias em atraso, para ti que preferesno escritor a ausência de faculdades descritivas ou instrutivas, eu destaco algumasfolhas horrendas de meu caderno de condenado.
Sangue Ruim
De meus antepassados gauleses tenho o olho azul e branco, e a falta de jeito naluta. Julgo minhas vestes tão bárbaras quanto as suas. Mas não unto meus cabelos.Os gauleses eram os esfoladores de animais, os queimadores de ervas maisincapazes de seu tempo.Deles, herdei: a idolatria e o amor ao sacrilégio;  todos os vícios, cólera, luxúria magnífica, a luxúria  e sobretudo a mentira e a preguiça.Tenho horror a todos os ofícios. Patrões e operários, todos campônios, ignóbeis. Amão que escreve é a mesma que lavra.  Que século de mãos!  Jamais terei mão.Além do mais, a domesticidade leva muito longe. A honestidade dos mendigos meexaspera. Os criminosos me repugnam como os castrados: quanto a mim, estouintacto, e isso pouco me importa.Mas quem fez minha língua assim pérfida, a ponto de fazê-la guiar e proteger minhapreguiça? Sem servir-me nem mesmo do meu corpo para viver, e mais ocioso que osapo, vivi em todas as partes. Não há uma só família da Europa que eu nãoconheça.  Quer dizer, famílias como a minha, que tudo devem à Declaração dosDireitos do Homem.  Conheci cada filho de família!Tivesse eu antecedentes num ponto qualquer da história da França!


Mas não, nada.É para mim evidente que sempre fui raça inferior. Não posso compreender arevolta. Minha raça não se sublevou nunca senão para pilhar: como os lobos aoanimal que não mataram.Evoco a história da França, filha mais velha da Igreja. Vilão, teria feito a viagem àterra santa; tenho na memória caminhos das planícies suávias, paisagens deBizâncio, muralhas de Solima; o culto de Maria, a ternura pelo crucificadodespertando em mim em meio a mil magias profanas.  Sentei-me, leproso, sobreos vasos quebrados e urtigas, ao pé de um muro carcomido pelo sol.  Mais tarde,cavaleiro, teria dormido sob as noites de Alemanha.E mais ainda: danço o sabá numa clareira rubra, com velhas e crianças.Nada recordo além desta terra e do cristianismo. Jamais findaria de rever-me nessepassado. Mas sempre só; sem família; além do mais, que língua falaria? Jamais mevejo nos conselhos do Cristo; tampouco nos conselhos dos Senhores, representantes do Cristo.Embora houvesse estado no século anterior: só hoje torno a encontrar-me. Nãomais vagabundos, nem guerras incertas. A raça inferior cobriu tudo  o povo, comose diz, a razão, a nação e a ciência.A ciência! Tudo foi recomeçado. Para o corpo e a alma,  o viático,  têm-se amedicina e a filosofia,  os remédios das comadres e as canções popularesarranjadas. E as diversões dos príncipes e os jogos que eles proibiam! Geografia,cosmografia, mecânica, química!...A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha! Porque não haveria degirar?É a visão dos números. Dirigimo-nos ao Espírito. É certo, é oráculo, o que digo. Eucompreendo, e não sabendo explicar-me sem palavras pagãs, preferiria calar-me.O sangue pagão retorna! O Espírito está perto, porque Cristo não me ajuda, dando àminha alma nobreza e liberdade? Enfim! o Evangelho passou! O Evangelho! OEvangelho.Espero Deus com gula. Sou de uma raça inferior desde toda eternidade.Eis-me aqui, sobre a praia armoricana. Que as cidades se iluminem à noite. Minhajornada findou: deixo a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões; os climasperdidos me curtirão. Nadar, mastigar a erva, caçar, e sobretudo fumar; beberlicores fortes como metal fundente,  como faziam os ancestrais em torno ao fogo.Voltarei, com membros de ferro, pele escura, olhar selvagem: por minha máscara.Me julgarão de raça forte. Terei ouro; serei ocioso e brutal. As mulheres cuidamdesses enfermos ferozes que voltam dos países quentes. Me envolverei nosassuntos políticos. Serei salvo.Agora sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor é dormir, completamentebêbado, na praia.Não nos vamos.  Retomemos estes caminhos, carregando meu vício, o vício quedeitou suas raízes de sofrimento a meu lado, desde a idade da razão  que sobe aocéu, me golpeia, me derruba, me arrasta.A última inocência e a última timidez. Está dito. Não transmitir ao mundo meus



Mas não, nada.É para mim evidente que sempre fui raça inferior. Não posso compreender arevolta. Minha raça não se sublevou nunca senão para pilhar: como os lobos aoanimal que não mataram.Evoco a história da França, filha mais velha da Igreja. Vilão, teria feito a viagem àterra santa; tenho na memória caminhos das planícies suávias, paisagens deBizâncio, muralhas de Solima; o culto de Maria, a ternura pelo crucificadodespertando em mim em meio a mil magias profanas.  Sentei-me, leproso, sobreos vasos quebrados e urtigas, ao pé de um muro carcomido pelo sol.  Mais tarde,cavaleiro, teria dormido sob as noites de Alemanha.E mais ainda: danço o sabá numa clareira rubra, com velhas e crianças.Nada recordo além desta terra e do cristianismo. Jamais findaria de rever-me nessepassado. Mas sempre só; sem família; além do mais, que língua falaria? Jamais mevejo nos conselhos do Cristo; tampouco nos conselhos dos Senhores, representantes do Cristo.Embora houvesse estado no século anterior: só hoje torno a encontrar-me. Nãomais vagabundos, nem guerras incertas. A raça inferior cobriu tudo  o povo, comose diz, a razão, a nação e a ciência.A ciência! Tudo foi recomeçado. Para o corpo e a alma,  o viático,  têm-se amedicina e a filosofia,  os remédios das comadres e as canções popularesarranjadas. E as diversões dos príncipes e os jogos que eles proibiam! Geografia,cosmografia, mecânica, química!...A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha! Porque não haveria degirar?É a visão dos números. Dirigimo-nos ao Espírito. É certo, é oráculo, o que digo. Eucompreendo, e não sabendo explicar-me sem palavras pagãs, preferiria calar-me.O sangue pagão retorna! O Espírito está perto, porque Cristo não me ajuda, dando àminha alma nobreza e liberdade? Enfim! o Evangelho passou! O Evangelho! OEvangelho.Espero Deus com gula. Sou de uma raça inferior desde toda eternidade.Eis-me aqui, sobre a praia armoricana. Que as cidades se iluminem à noite. Minhajornada findou: deixo a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões; os climasperdidos me curtirão. Nadar, mastigar a erva, caçar, e sobretudo fumar; beberlicores fortes como metal fundente,  como faziam os ancestrais em torno ao fogo.Voltarei, com membros de ferro, pele escura, olhar selvagem: por minha máscara.Me julgarão de raça forte. Terei ouro; serei ocioso e brutal. As mulheres cuidamdesses enfermos ferozes que voltam dos países quentes. Me envolverei nosassuntos políticos. Serei salvo.Agora sou maldito, tenho horror à pátria. O melhor é dormir, completamentebêbado, na praia.Não nos vamos.  Retomemos estes caminhos, carregando meu vício, o vício quedeitou suas raízes de sofrimento a meu lado, desde a idade da razão  que sobe aocéu, me golpeia, me derruba, me arrasta.A última inocência e a última timidez. Está dito. Não transmitir ao mundo meus


trabalhar.Recebi no coração o golpe de misericórdia. Não o tinha previsto!Jamais pratiquei o mal. Os dias me serão leves, o arrependimento me será poupado.Não terei tido os tormentos da alma quase morta para o bem, na qual ascende aluminosidade severa como a dos círios fúnebres. O destino do filho de família,esquife prematuro coberto de límpidas lágrimas. Sem duvida, a devassidão éestúpida, o vício é idiota; é preciso jogar fora a podridão. Mas o relógio não teráchegado a tocar senão a hora da dor pura! Serei suspenso como uma criança, parabrincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças!Depressa! existem outras vidas?  O sono entre riquezas é impossível. Só o amordivino outorga as chaves da ciência. Vejo que a natureza não passa de umespetáculo de bondade. Adeus quimeras, idéias, erros.O canto judicioso dos anjos se eleva do navio salvador: é o amor divino.  Doisamores! Posso morrer do amor terrestre, morrer de devoção. Deixei almas cujosofrimento aumentará com minha partida! Vós me escolhestes entre os náufragos,não são meus amigos os que ficam?Salvai-os!Nasceu-me a razão. O mundo é bom. Abençoarei a vida. Amarei meus irmãos. Nãosão mais promessas infantis. Nem a esperança de escapar à velhice e à morte.Deus faz minha força e eu louvo Deus.O tédio não mais é meu amor. Os ódios, a devassidão, a loucura, dos quais conheçotodos os ímpetos e desastres,  todo meu fardo foi arriado. Apreciemos semvertigens a extensão da minha inocência.Eu não seria mais capaz de pedir a consolação de uma paulada. Não creio terembarcado em núpcias, com Jesus Cristo por sogro.Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Vejo a liberdade na salvação:como consegui-la? Os gostos frívolos me abandonaram. Não mais necessidade dedevoção nem de amor divino. Não deploro o século dos corações sensíveis. A cadaum sua razão, desprezo e caridade: ocupo meu lugar no cume desta angélica escalade bom senso.Quanto à felicidade instituída, doméstica ou não...não, não posso. Sou muitodissipado, frágil em excesso. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: quanto amim, minha vida me pesa, levanta vôo e flutua longe, acima da ação, esse preciosocentro do mundo.Que solteirona estou me tornando, perdendo a coragem de amar a morte!Se Deus me concedesse a calma celestial, aérea, a oração,  como os antigossantos.  Os santos! esses fortes! os anacoretas, artistas de uma espécie jáextinta!Farsa contínua! Minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa que todos devemrepresentar.Basta! eis a punição.  Em marcha!Os pulmões queimam, as têmporas latejam! A noite roda em meus olhos, atravésdeste sol! O coração...os membros...



Tive razão em desprezar essa gente simples que não perderiam a ocasião de umacarícia, parasitas da limpeza e da saúde de nossas mulheres, hoje que elas tãopouco concordam conosco.Tive razão em todos meus desdéns: pois estou me evadindo!Eu me evado!Eu me explico.Ontem ainda eu suspirava: “Céu! Somos em excesso os condenados aqui em baixo!Quanto a mim, já vivo há tanto tempo entre eles! Conheço-os a todos. Nós nosreconhecemos sempre; nos detestamos. A caridade nos é desconhecida. No entantosomos polidos: nossas relações com o mundo são muito corretas! Não é espantoso?O mundo! os mercadores, os ingênuos!  Não somos desonrados.  Mas como nosreceberiam os eleitos? No entanto há pessoas mal-humoradas e alegres, falsoseleitos, precisamos pois de audácia ou humildade para abordá-los. São os únicoseleitos. Não são os que abençoam!Tenho recobrado dois vinténs de razão  isto passa rápido!  vejo que minhasangustias decorrem de não ter me apercebido suficientemente cedo de queestamos no Ocidente. Os pântanos ocidentais! Não que eu julgue a luz alterada, aforma extenuada, o movimento desviado...Bem! eis que meu espírito quer assumirabsolutamente todos os desenvolvimentos cruéis que sofreu o espírito desde o fimdo Oriente...Isto quer meu espírito!...Meus dois vinténs de razão de acabaram! O espírito é autoridade, quer que euesteja no Ocidente. Seria preciso calá-lo para concluir como eu desejaria.Eu mandava ao diabo as palmas dos mártires, os esplendores da arte, o orgulho dosinventores, o ardor dos saqueadores; eu retornava ao Oriente e à sabedoriaprimeira e eterna. Parece que é um sonho de indolência grosseira!No entanto, de modo algum eu pensava no prazer de escapar aos sofrimentosmodernos. Não tinha em vista a sabedoria bastarda do Corão.  Mas não há umsuplício real no fato de que, desde esta declaração de ciência, o cristianismo, ohomem se jogue, prove a si mesmo as evidencias, se encha de prazer de repetiressas provas, e não viva senão assim? Tortura sutil, tola; fonte de minhasdivagações espirituais. A natureza poderia entediar-se, talvez. O senhorPrudhomme nasceu com o Cristo.Não é porque cultivamos a bruma! Devoramos a febre com nossos legumesaquosos. E a embriaguez! e o tabaco! e a ignorância! e as devoções!  Estará tudoisso suficientemente longe do pensamento da sabedoria do Oriente, a pátriaprimitiva? Porque um mundo moderno, se tais venenos são inventados!Os homens de Igreja dirão: Compreendemos. Mas quereis falar do Éden. Nada hápara vós na historia dos povos orientais.  De fato; era no Éden que eu pensava!Quanto significa para meu sonho esta pureza das raças antigas!Os filósofos: O mundo não tem idade. A humanidade se desloca, simplesmente.Estais no Ocidente, mas livres de habitar em vosso Oriente, tão antigo quantoqueirais que o seja,  e de mele morar confortavelmente. Não sejais um vencido.Filósofos, sois de vosso Ocidente.Tem cuidado, meu espírito. Nada de determinações violentas para a salvação.Exercita-te!  Ah! a ciência não avança som suficiente rapidez para nós!

Mas me apercebo de que meu espírito dorme.Estivesse sempre desperto a partir deste momento, cedo chegaríamos à verdade,que talvez nos rodeia com seus anjos chorosos!... Estivesse desperto até estemomento, eu não teria cedido aos instintos deletérios, em uma época imemorial!... Se tivesse se mantido sempre desperto, eu vogaria em plena sabedoria!...Ó pureza! pureza!Foi este minuto de lucidez o que me deu a visão da pureza!  Pelo espírito vai-se aDeus!Dilacerante infortúnio!
O relâmpago
O trabalho humano! é a explosão que ilumina, de vez em quando, meu abismo.“Nada é vaidade; rumo à ciência, e adiante! Clama o Eclesiastes moderno, isto é,Todo o Mundo. E no entanto os cadáveres dos maus e ociosos caem sobre ocoração dos outros...Ah...rápido; lá em baixo, alem da noite, estas recompensasfuturas, eternas...escaparemos delas?...Que posso eu? Conheço o trabalho; e a ciência é muito lenta. Que a prece galope eque ruja a luz...bem a vejo. É muito simples, e faz muito calor; prescindirão de mim.Tenho meu dever, como muitos serei dele orgulhoso, deixando-o de lado.Minha vida está gasta. Vamos! finjamos, vadiemos, ó piedade! E existiremosdivertindo-nos, sonhando amores monstros e universos fantásticos, lamuriando-nose censurando as aparências do mundo, saltimbanco, mendigo, artista, bandido, sacerdote! Em minha cama de hospital, o odor do incenso volta a mim poderoso;guardião dos aromas sagrados, confessor, mártir...Reconheço ali a sórdida educação de minha infância. Depois, que!...Andar meusvinte anos, se os outros andam vinte anos...Não! Não! agora me revolto contra a morte! O trabalho parece excessivamente levea meu orgulho: seria um suplício muito breve minha traição ao mundo. No últimoinstante, eu atacaria à direita, à esquerda...Então,  oh! pobre alma querida, a eternidade estaria perdida para nós!
Manhã
Não tive eu uma vez uma juventude amável, heróica, fabulosa, digna de ser escritaem folhas de ouro,  sorte excessiva! Por que crime, por que erro, mereci minhaatual fraqueza? Vós que pretendeis que os animais soluçam de tristeza, que osdoentes desesperam, que os mortos têm pesadelos, tratai de narrar minha queda emeu sono. Quanto a mim, não posso explicar-me mais que o mendigo com seuscontínuos Pater e Ave Maria. Não sei mais falar!Hoje, no entanto, creio ter acabado o relato de meu inferno. Era realmente oinferno; o antigo, cujas portas o filho do homem abriu.No mesmo deserto, na mesma noite, sempre meus olhos cansados despertam coma estrela de prata, sempre, sem que se emocionem os Reis da vida, os três magos,

o coração, a alma, o espírito. Quando iremos, alem das praias e montes, saudar onascimento do novo trabalho, a sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demônios,o fim da superstição, adorar,  os primeiros!  o Natal sobre a terra?O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida.
Adeus
Já é outono!  Ma porque deplorar um sol eterno, se estamos empenhados nadescoberta da claridade divina,  longe das gentes que morrem ao correr dasestações.O outono. Nossa barca erguida nas brumas imóveis ruma ao porto da miséria, acidade enorme sob o céu manchado de fogo e barro. Ah! os andrajos podres, o pãoensopado na chuva, a embriaguez, os mil amores que me crucificaram! Nuncadeixará de existir essa vampiro rainha de milhões de almas e corpos mortos e queserão julgados! Revejo-me, apele roída pela lama e peste, os cabelos e as axilascheios de vermes, e vermes ainda maiores no coração, estendido entre osdesconhecidos sem idade, sem sentimento...Eu poderia assim morrer...Horrorosaevocação! Execro a miséria.E temo o inverno porque é a estação do conforto! Vejo às vezes no céu praias infinitas cobertas de brancas nações em festa. Umagrande nau de ouro, acima de mim, agita seus pavilhões multicolores sob as brisasda manha. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventarnovas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei adquirir poderessobrenaturais. Muito bem! Devo sepultar minha imaginação e minhas lembranças.Uma linda glória de artista e de narrador perdida!Eu! Eu que me chamei mago ou anjo, dispensado de toda moral, voltei ao chão,com um dever a buscar, e obrigado a áspera realidade abraçar! Campônio!Engano-me? seria a caridade, para mim, irmã da morte?Enfim, pedirei perdão por ter-me nutrido de mentira? E sigamos.Mas nenhuma mão amiga! e onde encontrar o socorro?Sim, a nova hora é pelo menos muito severa.Pois posso dizer que a vitória me foi dada: o ranger de dentes, o sibilar do fogo, ossuspiros pestilentos se atenuam. Todas as lembranças imundas se apagam. Minhasúltimas queixas se esfumam,  inveja dos mendigos, dos salteadores, dos amigosda morte, dos párias de toda espécie.  Malditos, se eu me vingasse!É necessário ser absolutamente moderno.Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! O sangue ressequidofumega em meu rosto, e nada tenho atrás de mim a não ser este horrívelarbusto!...O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas avisão da justiça é o prazer só de Deus.É a vigília, entretanto. Recebamos todos os influxos de real vigor e ternura. E, aoromper da aurora, armados de ardente paciência, entraremos nas cidadesesplêndidas.

Que falava eu de mão amiga? É uma bela vantagem poder rir-me dos velhosamores ilusórios, e cobrir de vergonhas esses casais mentirosos  vi o inferno dasmulheres lá em baixo;  e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo.
Abril-agosto, 1873 

Um comentário:

  1. Um grande presente pra quem acessar o blog, o poema na íntegra, muito boa sacada, só nos resta agradecer.

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